segunda-feira, 12 de março de 2018

Sobre Maus, vol.1

1. Sobre a obra e o autor
Maus foi publicado em série entre 1980 e 1991 na revista Raw, dirigida pelo autor e pela sua esposa Françoise Mouly, sendo compilada e publicada em três volumes a partir de 1986 até 1991. O autor Art Spiegelman (baptizado Itzhak Avraham ben Zeevm 1948, em Estocolmo, Suécia) fez parte e criou nos anos 70 uma série de revistas de comix, à margem do mundo mainstream da DC e da Marvel; teve estabilidade financeira trabalhando para a Topps, uma marca de pastilhas elásticas para a qual contribuiu ao longo de 20 anos, trabalhando também dos anos 90 até aos inícios dos anos 2000 na New Yorker enquanto ilustrador e ocasional ensaísta. Foi artista à revelia dos pais, que queriam que tivesse sido dentista; sentiu ao longo da vida a sombra do irmão que morreu no Holocausto e que nunca conheceu; a sua mãe suicida-se no dia em que regressa a casa do seu internamento por um esgotamento nervoso induzido por um consumo de LSD excessivo. Maus é a sua grande obra, embora tenha produzido amplo trabalho de banda desenhada, ensaios, capas de revistas.
Maus é obra fundamental para a consolidação do termo “graphic novel” e para a credibilidade literária da banda desenhada enquanto meio artístico que não meramente juvenil. É importante a contextualização de Maus numa série de obras que dos finais dos 70 até meados, finais dos anos 80, fazem parte de uma onda que levará a uma crescente atenção académica ao mundo da banda desenhada, nomeadamente o primeiro livro de Will Eisner, A contract with God em 1978, Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons em 1986(embora reunido em 1987) e The Dark Knight Returns de Frank Miller, igualmente editado em 1986. O sucesso de vendas e junto dos críticos que A Contract With God de Will Eisner gerou, levou à consolidação do termo graphic novel para histórias em formato de banda desenhada que excediam as habituais 32 páginas americanas ou 64 de maxi-size menos vulgares, e contavam em formato mais extenso estórias que tinham em si temas mais tradicionalmente associados ao romance ou ao conto.
2. Maus  livro de memórias da família Spiegelman e da história do Holocausto
Maus é um retrato altamente pessoal da relação que o autor tem com o seu pai, servindo a sua interação ao longo de uma série de visitas que o autor faz a casa do pai e as histórias que este lhe conta como base para se contar a história da sua família, intimamente ligada à história do Holocausto(de 84 membros de uma família alargada sobreviveram 11 ao Holocausto).
Este primeiro volume do livro conta a história do Vladek e Anja (pais do autor) pelo ponto de vista de Vladek, começando nos anos anteriores à deflagração da 2ª guerra mundial e terminando em 1944. A vida tranquila antes do Holocausto, o conhecer e o apaixonar-se do casal, a vida dos dois ao longo do Holocausto e os horrores por que passaram, tentando evadir a captura dos alemães e o envio para os campos de concentração são os relatos principais da história apresentada. O que distingue fundamentalmente o Maus de outras obras sobre relatos em primeira mão de sobrevivências do Holocausto são duas coisas:o antropomorfismo das personagens, que apresenta os judeus como ratos, alemães como gatos, polacos como porcos e americanos como cães; e o plano do dia atual, com o pai, sobrevivente, a passar a sua memória ao seu filho. como herança coletiva dupla: histórica e familiar.
3. O desconcertante antropomorfismo
A forma simples e direta dos desenhos da banda desenhada(pranchas pequenas, desenhos grandes, a preto e branco com grande contraste) permite uma referência visual imediatamente apreensível pelo leitor, nomeadamente horrores do Holocausto que requereriam dezenas de palavras para descrever conseguem aqui ser sentidas com a sua carga emocional e o seu peso histórico intacto nuns rasgos telegráficos desenhados,sem recorrer a embelezamentos. É a realidade pura e crua- à exceção de ser uma história sobre ratos, gatos e porcos. O antropomorfismo, enquanto metáfora visual, remete de certa forma o leitor para o universo da fábula, do desenho animado do Mickey Mouse, um universo tradicionalmente infantil. Como consequência, ver os actos de violência e barbárie, que nós sabemos serem experiências reais e que estam ancoradas nas vida das pessoas a quem estas memórias pertencem, exacerbam de forma desconcertante o horror e o surreal do seu sofrimento. É também o sublinhar da desumanização levada a cabo pelos nazis dos judeus e dos polacos(apresentados na sua propaganda como ratos e porcos) assim como da relação predatorial que os alemães impuseram sobre os judeus.
4. A duplicidade da memória, o seu peso e o fardo do seu legado
Igualmente desconcertante é a a duplicidade do pai enquanto Vladek ,o sobrevivente heroico do Holocausto, mas também como Vladek, o pai que acorda o filho de madrugada para que venha ter consigo limpar o telhado, o pai que atira pela janela um casaco do filho por achar que já não está em condições para o seu filho usar, que apanha fios eléctricos na rua para que não tenha que os vir a comprar no futuro, que tem um casamento sem qualquer tipo de romance em que rebaixa constantemente a sua esposa, que é caracterizado por acumular todo o tipo de tralhas em casa- enfim o pai rabugento, desligado e avarento(a certa altura o autor queixa-se no livro que o pai é estereotípicamente semita e a personalidade do pai corta um bocado com a imagem que ele quer passar dele para o livro) com quem o filho confessa várias vezes ao longo da obra não ter uma relação minimamente estável. São aliás várias as vezes ao longo do livro em que o filho se refere aos pais pelos nomes próprios (sem ser no contexto da história dos pais no Holocausto), referindo ainda que formou-se como artista a despeito dos pais, por ser uma área em que sabia que o seu pai jamais quereria competir consigo como acontecia sempre que o pai pedia ajuda ao filho numa qualquer tarefa doméstica. Enfim, às memórias de Vladek o sobrevivente judeu heroico são justapostas as crónicas das suas ações (enquanto Spiegelmann escreve o seu livro) como homem embirrento e avarento, pai distante e antagónico, marido bruto e desinteressado, sobrevivente à morte do seu filho primogénito, da sua primeira mulher e amor da sua vida e àquilo que considerava ser a degeneração do seu filho vivo.
A família e a memória que perpetua enquanto herança coletiva parecem-me ser temas centrais no livro. A memória como herança coletiva em dois sentidos: histórica e familiar. A memória como legado histórico da família, o legado como maldição pessoal do pai e do filho, da sua relação e das suas vidas pessoais. O sacrifício familiar, a desagregação dos laços familiares( quer por via dos primos e vizinhos que cooperavam com os nazis que serão temas recorrentes ao longo das memórias do pai, quer pelos relatos do autor da sua conturbada relação familiar, particularmente com a história dentro da história “Prisoner on the Hell Planet” que relata a reação do autor e do seu pai ao suicídio da sua mãe) são como os ombros que carregam o peso das memórias de Vladek ao longo do livro e que carregam a versão aqui desenhada pelo seu filho.
O pai, figura central na obra, é simultaneamente personagem histórico e familiar no épico trágico do Holocausto, que marcará para sempre a sua vida. O próprio autor de certa forma também o é enquanto parte da primeira geração de judeus nascidos após o Holocausto e filho que nunca conseguiu cumprir as expectativas dos pais. Mesmo após a viagem para os EUA, o seu legado persegui los à, ensombrando a sua relação, e ressurgindoanos mais tarde, com o suicídio de Anja, a mãe e esposa. Tão forte quanto o sofrimento dos judeus serem perseguidos com a máquina surreal de matança alemã, que Spiegelmann mostra com grande crueza e sobriedade, é o legado singular do Holocausto na sua família e como uma memória de algo que não viveu diretamente é no entanto sua , e como ela é capaz de pervadir totalmente o seu espaço central afetivo.


ANTES DA REVISÃO: 


Sobre a obra e o autor

Maus foi publicado em série entre 1980 e 1991 na revista Raw, dirigida pelo autor e pela sua esposa Françoise Mouly, sendo compilada e publicada em três volumes a partir de 1986 até 1991. O autor Art Spiegelmann (baptizado Itzhak Avraham ben Zeevm 1948, em Estocolmo, Suécia) fez parte e criou nos anos 70 uma série de revistas de comix, à margem do mundo mainstream da DC e da Marvel; teve estabilidade financeira trabalhando para a Topps, uma marca de pastilhas elásticas para a qual contribuiu ao longo de 20 anos, trabalhando também dos anos 90 até aos inícios dos anos 2000 na New Yorker enquanto ilustrador e ocasional ensaísta. Foi artista à revelia dos pais, que queriam que tivesse sido dentista; sentiu ao longo da vida a sombra do irmão que morreu no Holocausto e que nunca conheceu; a sua mãe suicida-se no dia em que regressa a casa do seu internamento por um esgotamento nervoso induzido por um consumo de LSD excessivo. Maus é a sua grande obra, embora tenha produzido amplo trabalho de banda desenhada, ensaios, capas de revistas.
Maus é obra fundamental para a consolidação do termo “graphic novel” e para a credibilidade literária da banda desenhada enquanto meio artístico que não meramente juvenil. É importante a contextualização de Maus numa série de obras que dos finais dos 70 até meados, finais dos anos 80, fazem parte de uma onda que levará a uma crescente atenção académica ao mundo da banda desenhada, nomeadamente o primeiro livro de Will Eisner, “A contract with God” em 1978, “Watchmen” de Alan Moore e Dave Gibbons em 1986(embora reunido em 1987) e “Dark Knight Returns” de Frank Miller, igualmente editado em 1986. O sucesso de vendas e junto dos críticos que“A Contract With God” de Will Eisner gerou, levou à consolidação do termo graphic novel para histórias em formato de banda desenhada que excediam as habituais 32 páginas americanas ou 64 de maxi-size menos vulgares, e contavam em formato mais extenso estórias que tinham em si temas mais tradicionalmente associados ao romance ou ao conto.


Maus- livro de memórias da família Spiegelmann e da história do Holocausto:

Maus é um retrato altamente pessoal da relação que o autor tem com o seu pai, servindo a sua interação ao longo de uma série de visitas que o autor faz a casa do pai e as histórias que este lhe conta como base para se contar a história da sua família, intimamente ligada à história do Holocausto(de 84 membros de uma família alargada sobreviveram 11 ao Holocausto).
Este primeiro volume do livro conta a história do Vladek e Anja (pais do autor) pelo ponto de vista de Vladek, começando nos anos anteriores à deflagração da 2ª guerra mundial e terminando em 1944. A vida tranquila antes do Holocausto, o conhecer e o apaixonar-se do casal, a vida dos dois ao longo do Holocausto e os horrores por que passaram, tentando evadir a captura dos alemães e o envio para os campos de concentração são os relatos principais da história apresentada. O que distingue fundamentalmente o Maus de outras obras sobre relatos em primeira mão de sobrevivências do Holocausto são duas coisas:o antropomorfismo das personagens, que apresenta os judeus como ratos, alemães como gatos, polacos como porcos e americanos como cães; e o plano do dia atual, com o pai, sobrevivente, a passar a sua memória ao seu filho. como herança coletiva dupla: histórica e familiar.


O desconcertante antropomorfismo

A forma simples e direta dos desenhos da banda desenhada(pranchas pequenas, desenhos grandes, a preto e branco com grande contraste) permite uma referência visual imediatamente apreensível pelo leitor, nomeadamente horrores do Holocausto que requereriam dezenas de palavras para descrever conseguem aqui ser sentidas com a sua carga emocional e o seu peso histórico intacto nuns rasgos telegráficos desenhados,sem recorrer a embelezamentos. É a realidade pura e crua- à exceção de ser uma história sobre ratos, gatos e porcos. O antropomorfismo, enquanto metáfora visual, remete de certa forma o leitor para o universo da fábula, do desenho animado do Mickey Mouse, um universo tradicionalmente infantil. Como consequência, ver os actos de violência e barbárie, que nós sabemos serem experiências reais e que estam ancoradas nas vida das pessoas a quem estas memórias pertencem, exacerbam de forma desconcertante o horror e o surreal do seu sofrimento. É também o sublinhar da desumanização levada a cabo pelos nazis dos judeus e dos polacos(apresentados na sua propaganda como ratos e porcos) assim como da relação predatorial que os alemães impuseram sobre os judeus.

A duplicidade da memória, o seu peso e o fardo do seu legado

Igualmente desconcertante é a a duplicidade do pai enquanto Vladek ,o sobrevivente heroico do Holocausto, mas também como Vladek, o pai que acorda o filho de madrugada para que venha ter consigo limpar o telhado, o pai que atira pela janela um casaco do filho por achar que já não está em condições para o seu filho usar, que apanha fios eléctricos na rua para que não tenha que os vir a comprar no futuro, que tem um casamento sem qualquer tipo de romance em que rebaixa constantemente a sua esposa, que é caracterizado por acumular todo o tipo de tralhas em casa- enfim o pai rabugento, desligado e avarento(a certa altura o autor queixa-se no livro que o pai é estereotípicamente semita e a personalidade do pai corta um bocado com a imagem que ele quer passar dele para o livro) com quem o filho confessa várias vezes ao longo da obra não ter uma relação minimamente estável. São aliás várias as vezes ao longo do livro em que o filho se refere aos pais pelos nomes próprios (sem ser no contexto da história dos pais no Holocausto), referindo ainda que formou-se como artista a despeito dos pais, por ser uma área em que sabia que o seu pai jamais quereria competir consigo como acontecia sempre que o pai pedia ajuda ao filho numa qualquer tarefa doméstica. Enfim, às memórias de Vladek o sobrevivente judeu heroico são justapostas as crónicas das suas ações (enquanto Spiegelmann escreve o seu livro) como homem embirrento e avarento, pai distante e antagónico, marido bruto e desinteressado, sobrevivente à morte do seu filho primogénito, da sua primeira mulher e amor da sua vida e àquilo que considerava ser a degeneração do seu filho vivo.
A família e a memória que perpetua enquanto herança coletiva parecem-me ser temas centrais no livro. A memória como herança coletiva em dois sentidos: histórica e familiar. A memória como legado histórico da família, o legado como maldição pessoal do pai e do filho, da sua relação e das suas vidas pessoais. O sacrifício familiar, a desagregação dos laços familiares( quer por via dos primos e vizinhos que cooperavam com os nazis que serão temas recorrentes ao longo das memórias do pai, quer pelos relatos do autor da sua conturbada relação familiar, particularmente com a história dentro da história “Prisoner on the Hell Planet” que relata a reação do autor e do seu pai ao suicídio da sua mãe) são como os ombros que carregam o peso das memórias de Vladek ao longo do livro e que carregam a versão aqui desenhada pelo seu filho.
O pai, figura central na obra, é simultaneamente personagem histórico e familiar no épico trágico do Holocausto, que marcará para sempre a sua vida. O próprio autor de certa forma também o é enquanto parte da primeira geração de judeus nascidos após o Holocausto e filho que nunca conseguiu cumprir as expectativas dos pais. Mesmo após a viagem para os EUA, o seu legado persegui los à, ensombrando a sua relação, e ressurgindo, anos mais tarde, com o suicídio de Anja, a mãe e esposa. Tão forte quanto o sofrimento dos judeus serem perseguidos com a máquina surreal de matança alemã, que Spiegelmann mostra com grande crueza e sobriedade, é o legado singular do Holocausto na sua família e como uma memória de algo que não viveu diretamente é no entanto sua , e como ela é capaz de pervadir totalmente o seu espaço central afetivo.




2 comentários:

  1. O texto não tem bonecos? Amanhã vai mostrar imagens, certo?

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  2. Amanhã apresento imagens sim.
    Para quem tiver interesse em ler o Maus está disponível numa das dezenas de proxys do PB aqui https://pirateproxylist.com/ O PB tem uma série de bd's na íntegra em inglês disponível no formato .cbr que se lê com este programa gratuito http://www.cdisplayex.com/

    Para quem tiver interesse em explorar BD americana que saia fora do standard do super heroi deixo as sugestões:

    Safe Area Gorazde e Footnotes from Gaza de Joe Sacco
    A Contract with God e Life Force de Will Eisner
    Transmetropolitan de Warren Ellis e Darick Robertson
    Alec: the years have pants de Eddie Campbell
    From Hell de Alan Moore e Eddie Campbell

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Exame - 20/6, sala B 0.6, 14h

O exame de melhoria e/ou final será dia 20 e não 18, conforme fora inicialmente anunciado. Quem tiver algum problema, contacte-me.