O Amor é um Cão dos Diabos
Ainda sob os ares de São Valentim,
deixo aqui algumas passagens (escolhidas meramente por afinidade) do livro Fragmentos de um Discurso Amoroso, de
Roland Barthes. E, como me pareceu duplamente pertinente (pelo significado que
encerra e por o autor constar no programa da cadeira), atribuí o título a
partir de uma antologia poética de Charles Bukowski. Aos interessados, podem
descarregar estas duas obras aqui
e aqui,
respectivamente.
“Que
quer isto dizer, «pensar em alguém?» Quer dizer: esquecê-lo (sem esquecimento,
não há vida possível) e despertar muitas vezes desse esquecimento. Muitas
coisas, por associação, conduzem a ti no meu discurso. «Pensar em ti» nada mais
significa do que esta metonímia. Pois, em si mesmo, esse pensamento é vazio: eu
não te penso; apenas te faço regressar (na mesma proporção em que te esqueço).”
(pp. 58)
“É
certo que não existe felicidade na estrutura, mas toda a estrutura é habitável,
sendo mesmo esta, talvez, a sua melhor definição. Posso muito bem habitar o que
não me faz feliz; posso ao mesmo tempo lamentar-me e permanecer; posso recusar
o sentido da estrutura que me faz sofrer e atravessar sem desagrado alguns dos
seus bocados quotidianos (hábitos, pequenos prazeres, pequenas seguranças,
coisas suportáveis, tensões passageiras); (…)” (pp. 62)
“Ao
chorar, quero impressionar alguém, fazer pressão sobre ele («Vê o que fazes de
mim»). Pode ser – e é-o normalmente – o outro quem se constrange assim a
demonstrar abertamente a sua comiseração ou a sua insensibilidade; mas posso
também ser eu próprio: obrigo-me a chorar para provar a mim mesmo que a minha
dor não é uma ilusão: as lágrimas são signos, não expressões. Pelas minhas
lágrimas, conto uma história, elaboro um mito de dor e então habituo-me: posso
viver com ela, porque, ao chorar, ofereço a mim próprio um interlocutor
enfático que recolhe a mais «verdadeira» da mensagens, a do meu corpo, não a da
minha língua: «As palavras, o que são? Uma lágrima dirá mais.»1”
(pp. 74)
“[…]
ao mesmo tempo que me identifico com a infelicidade do outro, o que leio nessa
infelicidade é que ela existe sem mim
e que, sendo infeliz por si próprio, o outro me abandona: se ele sofre sem que
eu seja a causa, é porque não significo nada para ele: o seu sofrimento
anula-me na medida em que existe fora de mim próprio.” (pp. 80-1)
“Ou
ainda: em vez de querer definir o outro («O que é ele?»); volto-me para mim
mesmo: «O que quero eu, eu que quero conhecer-te?» O que aconteceria se
decidisse definir-te como uma força e não como uma pessoa? E se eu próprio me
situasse como uma outra força perante a tua força? Eis o que aconteceria: o meu
outro definir-se-ia apenas pelo sofrimento ou prazer que me proporciona.” (pp.
174)
1
Schubert,
Elogio das Lágrimas
BARTHES,
Roland (1977). Fragmentos de um Discurso
Amoroso. Lisboa: Edições 70
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